terça-feira, 23 de junho de 2015





ANINHA E SUAS PEDRAS
(Cora Coralina)

Não te deixes destruir…
Ajuntando novas pedras

e construindo novos poemas.

Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. 
Recomeça.

Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.

Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.




AMOR FEINHO
(Adelia Prado)

Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado é igual fé,
não teologa mais.
Duro de forte o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero um amor feinho.

terça-feira, 16 de junho de 2015

 
DÁDIVA
Czeslaw Milosz

Um dia tão feliz.
A névoa baixou cedo, eu trabalhava no jardim.
Os colibris se demoravam sobre a flor de madressilva.
Não havia coisa na terra que eu quisesse possuir.
Não conhecia ninguém que valesse a pena invejar.
O que aconteceu de mau, esqueci.
Não tinha vergonha ao pensar que fui quem sou.
Não sentia no corpo nenhuma dor.
Me endireitando, vi o mar azul e velas.

Czeslaw Milosz




Poeta polonês (1911-2004) foi um homem com uma história pessoal marcada pelas reviravoltas políticas do século XX. 

Dizia ele: “Sou um poeta da realidade. Digo que a terra não é um eco, nem o homem um fantasma.”

Católico — como a maioria dos poloneses, Milosz declarou certa vez ao jornal The Washington Post que era “um grande partidário da esperança humana”.

Senhoras e senhores, um pouco da poesia modernista de Czeslaw Milosz.

NÃO MAIS

Preciso contar um dia como mudei

Minha opinião sobre a poesia e por que
Me considero hoje um dos muitos 
Mercadores e artesãos do Império do Japão
Compondo versos sobre a floração da cerejeira,
Sobre crisântemos e a lua cheia.

Se eu pudesse descrever as cortesãs
De Veneza, como incitam com uma vareta o
 pavão no pátio
E desfolhar do tecido sedoso, da cinta nacarina
Os seios pesados, a marca
Avermelhada no ventre onde o vestido se
 abotoa,
Ao menos assim como as viu o dono das
 galeotas
Arribadas àquela manhã carregando ouro;
E se ao mesmo tempo pudesse encerrar seus
pobres ossos
No cemitério, onde o mar oleoso lambe 
 o portão,
Em palavras mais duráveis que o derradeiro
 pente
Que entre carcomas sob a lápide, só, espera 
 pela luz
Não duvidaria. Da resistência da matéria
O que se retém? Nada, quando muito o belo.
Então devem nos bastar as flores da cerejeira
E os crisântemos e a lua cheia.